O que faz um gênio?

Aos 16, o prodígio fez o SAT, o Enem dos Estados Unidos, e dormiu no meio. Mesmo assim, tirou nota máxima. Em testes de QI normais, Langan bate os 195 pontos, superior ao de Alebert Einstein, que era de 150. Com um histórico escolar invejável, Langan se tornou conhecido como o homem mais inteligente da América. Mas seu QI de gênio não lhe garantiu um futuro brilhante. Langan perdeu a bolsa na universidade e nunca mais voltou à academia. Hoje, aos 65 anos, o prodígio cria cavalos num rancho em Montana.

 Beethoven, Einstein e van Gogh: três exemplos de gênios que aliaram a inteligência à persistência, criatividade e domínio das emoções. (Joseph Karl Stieler/Domínio Público)

O caso mostra como inteligência e genialidade são assuntos diferentes — embora sejam amplamente confundidos. A ciência começou a mostrar esse fosso a partir de 1921, com o professor Lewis Terman (sim, o mesmo do texto anterior), da Universidade Stanford. Maravilhado com os feitos de crianças que se alfabetizavam sozinhas, Terman decidiu ir à caça dos pequenos precoces nas escolas da Califórnia e iniciou o Genetic Studies of Genius, até hoje o maior estudo sobre inteligência da história. Terman pediu a professores que indicassem seus alunos mais brilhantes e aplicou neles testes de QI. Os 10% melhores recebiam um segundo teste, e aqueles que tiravam mais de 130 pontos iam para a última prova. Foi assim que Terman mapeou cerca de 1,5 mil crianças de QI entre 140 e 200. Os pequenos gênios da Califórnia se tornaram conhecidos como os termites. “Não há nada mais importante que o QI, exceto os valores morais”, dizia Terman. O psicólogo não tinha dúvidas de que os termites iam ditar o futuro dos Estados Unidos.

Durante anos, Terman acompanhou sua turma como uma mãe. Computava seus feitos escolares, os casamentos, as doenças, a estabilidade emocional, os empregos, os salários, as promoções. Enviava cartas de recomendação a universidades e empresas e comemorava as conquistas da sua turma de elite em artigos nos jornais. Como ele previra, o grupo incluía políticos, médicos, professores, músicos, cientistas renomados. Trinta e cinco anos depois do início, 70 termites integravam a lista da poderosa American Men of Sciences dos EUA, dez faziam parte do Diretório dos Pesquisadores Americanos, que congrega os especialistas mais destacados das ciências humanas, três haviam sido eleitos para a National Academy of Sciences, o mais alto reconhecimento que um cientista pode alcançar, e 31 apareceram na publicação Quem é Quem na América, uma espécie de enciclopédia biográfica dos americanos mais relevantes. Para Terman, esses resultados não deixavam dúvidas de que o teste de QI era a melhor ferramenta para prever quem afinal se destacaria no futuro.

No maior estudo sobre inteligência já feito, um pesquisador acompanhou a vida e as carreiras de prodígios da Califórnia — e parte deles fracassou.   

Mas o sucesso de alguns participantes escondeu furos do estudo. Por exemplo: no seu afã de selecionar apenas os mais brilhantes, Terman deixou de fora o pequeno William Shockley, cujo QI não era alto o suficiente para se tornar um termite. A despeito de ficar de fora do grupinho de gênios, Shockley ingressou em Harvard e ajudou a conceber o transístor, um dispositivo eletrônico que está presente em quase todos os eletrodomésticos, do micro-ondas a celulares. Em 1956, recebeu o prêmio Nobel de Física, feito que nenhum termite amealhou. Havia vida inteligente abaixo da linha de corte estipulada por Terman.

Além disso, cerca de 15% da turma de superdotados não cumpriram o destino idealizado por seu criador. Pelo contrário, tiveram uma vida semelhante à de Chris Langan.

A crítica mais incisiva contra o estudo veio do sociólogo russo Pitirim Sorokin. Segundo Sorokin, se Terman tivesse selecionado aleatoriamente crianças com a mesma educação e status social dos termites e desprezado os resultados dos testes de QI, ele teria chegado ao mesmo grupo. O próprio Terman retirou o termo “gênios” da maior parte do quarto volume do Genetic Study of Genius, publicado em 1947. “Vimos que intelecto e conquistas estão longe de estarem perfeitamente correlacionados”, admitiu.

 Cientistas acreditam que a versatilidade de figuras como Einstein, que arranhava o violino, ajuda a provocar os estalos que transformam o mundo. (Reprodução/Domínio Público)

Após a experiência de Terman, ficou mais claro que gênios nascem de uma mistura de motivação, disciplina, criatividade e estrutura emocional — além de inteligência, é claro. Veja o caso da Universidade de Michigan, nos EUA. A instituição destina 10% das vagas na escola de Direito a minorias raciais. Para fazer valer a política afirmativa, precisou afrouxar as notas para ingresso, caso contrário, não preencheria nem 3% das vagas. A medida de reduzir a pontuação causou polêmica. Para ver se o sistema estava funcionando na prática — e acalmar os críticos —, a universidade decidiu ir atrás dos cotistas que haviam se formado para saber se eles tiveram sucesso na vida profissional.

Richard Lempert, um dos autores do levantamento, suspeitava que o diploma de Michigan não garantia mais do que uma carreira estável aos cotistas. Mas se surpreendeu com o resultado. Ao comparar cargos e salários entre os grupos, constatou que não havia diferença na comparação com os estudantes brancos. Eles eram igualmente bem-sucedidos. O caso dos universitários de Michigan revelou que não importa tanto se um estudante foi o primeiro ou o último colocado no vestibular. O ambiente acadêmico rico ajudaria a reduzir as diferenças.

QIs curiosos

Lewis Terman morreu em 1956, mas pesquisadores seguiram acompanhando os prodígios. Em 1968, a pesquisadora Melita Oden decidiu investigar os cem termites mais bem-sucedidos e cem fracassados para descobrir o que havia dado certo e errado nos dois perfis — naquela época, os superdotados já eram americanos de meia-idade. O grupo de sucesso tinha sete pontos a mais de QI do que o time dos fracassados, mas Melita concluiu que a inteligência não teve influência no desfecho. A principal diferença era o caráter: os termites bem-sucedidos eram mais motivados, estudiosos e curiosos. Desde pequenos, participavam de mais atividades extracurriculares na escola e, depois de formados, tinham maior interesse por esportes. Os outros se mostraram pouco persistentes desde a infância, e essa característica se manteve ao longo da vida. Ou seja, atributos como tenacidade, curiosidade e motivação (que não têm relação direta com a inteligência) são cruciais para o sucesso.

Além disso, os gênios são bem menos nerds do que a gente imagina. Como Einstein concebeu a Teoria da Relatividade? O que fez Michelangelo projetar a Capela Sistina? Para Dean Keith Simonton, professor de psicologia da Universidade da Califórnia, um traço em comum entre eles é justamente a versatilidade. Einstein era um conhecido dorminhoco, mas encontrava tempo para tocar Bach e Mozart no violino. Segundo Simonton, Galileu provavelmente identificou os satélites de Júpiter porque gostava de pintar.

 Pesquisadores descobriram um gene que liga a criatividade a surtos de psicose — e ele pode ajudar a explicar casos como a orelha decepada de van Gogh. (Vincent van Gogh/Domínio Público)

Quer dizer: é nessas horas de lazer que os insights acontecem. “As melhores ideias não vêm quando estamos focados nelas”, diz o psicólogo Barry Kaufman, autor do livro (Un)gifted — Intelligence Redefined (ainda sem tradução no português). Não há dúvidas de que Einstein, por exemplo, dominava os conceitos técnicos da física. Mas o que fez dele o maior gênio da ciência foi uma característica diferente: a criatividade que o fez enxergar a matéria e a energia como duas faces da mesma moeda. Em 1999, o psicólogo Jonathan Plucker, professor da Universidade de Connecticut, provou que um dos testes aplicados para desvendar o potencial criativo das pessoas, chamado de Torrance, era três vezes mais eficaz do que os testes de QI para prever realizações criativas na vida adulta. Mas como funciona essa criatividade? O time da psicóloga Shelley Carson, de Harvard, constatou que os gênios têm uma cognição aberta ao estranho, estímulos que geralmente são barrados ou passam despercebidos pela maioria. Aliada à alta capacidade de trabalho e à inteligência, essa habilidade de aceitar o novo forma as bases cognitivas para o momento “a-ha”, o estalo que pode virar uma revolução.

No entanto, uma sombra acompanha as cabeças mais geniais. Essa capacidade de enxergar além do alcance parece estar ligada à loucura, como nos casos de Van Gogh, que cortou a própria orelha, da suicida Virginia Wolf ou do paranoico Isaac Newton. Parte dos psicólogos encara esses quadros como exceções, mas Simonton fez um estudo de revisão, em 2005, que indicou uma estreita associação entre genialidade e problemas mentais. Artistas que responderam a um teste de personalidade, o Eysenck, apresentaram maior chance de serem depressivos, alcoólatras, psicóticos, egocêntricos, frios, agressivos e obstinados na comparação com a população em geral.

Um estudo de 2009 do psiquiatra Szabolcs Kéri, da universidade húngara de Szeged, encontrou uma variação genética ligada tanto à criatividade quanto à psicose, o que pode ajudar a explicar a relação entre gênios e distúrbios mentais. “Quando a inteligência ultrapassa a média, observamos menor sociabilização. E, se alta criatividade está presente, há maior incidência de transtornos psiquiátricos”, diz a psicóloga Carmen Flores-Mendoza, da UFMG.

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É por isso que o ambiente tem papel fundamental em transformar potencial cognitivo em Nobéis, Oscars e Grammys. Ter uma família unida também ajuda. Foi o que mostrou um estudo americano, que acompanhou 379 crianças de Boston dos 5 anos até a vida adulta. Pais que controlam o desempenho escolar dos filhos, mostrou a pesquisa, contam mais do que o QI para prever o sucesso profissional. Chris Langan sabe bem. Na hora de renovar a bolsa universitária, sua mãe esqueceu de assinar um documento importante, e Langan perdeu a vaga. Restaram os cavalos.

Por Sílvia Lisboa – Superinteressante – jun18

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